Olá Devoradores,
A nossa grande escritora Roxane Norris, lançou em seu blog o trecho abaixo, do seu próximo livro Indulto ao Corso. O livro é um romance épico. Espero que gostem.
Resgate
Rose estava a sete metros de
altura com os pés sobre a forma abaloada da fachada de Regent Court e os braços
esticados acima de sua cabeça. Os dedos
apoiados na borda da sacada a mantinham em equilíbrio exatamente abaixo dos
aposentos de Lorde Henry Stuart.
O vento castigava-lhe o rosto, a
calça de montaria tinha sido uma boa alternativa, já que lhe permitia amplos
movimentos, assim bem como a blusa de seda branca que, eventualmente, retirara
do guarda roupas de Sir Andrew Mackenzie na sua última temporada, quando o
filho mais jovem do prodígio no ramo financeiro do Mississipi a tentara
embaraçar, sugerindo que haviam ido muito além de um beijo.
Ela soprou com firmeza a mecha de
cabelo contra sua testa, lembrando-se do dia em que adquiria a peça.
***
Era um baile, como outro
qualquer, exceto pelo fato de que havia aceitado ir por insistência de sua tia,
Lady Hamilton. Não gostava de ir a bailes, principalmente os do Novo Mundo.
Louise, sua irmã mais nova, seria uma moça muito mais feliz em meio àquelas
futilidades e sedas.
Todavia, Louise tinha apenas dez
anos, e há quatro, Rose vinha evitando qualquer compromisso, com qualquer
jovem. Por mais que seu pai, vez o outra, a alertasse de suas
responsabilidades. Geralmente ocorrendo quando sua tia, Lady Hamilton, a viúva
do Conde de Sussex, os visitava imbuída do mais alto desejo de ver as sobrinhas
bem encaminhadas na vida. Era o que sempre dizia, desde que a irmã se fora,
logo depois do nascimento de Louise. O Duque de Stanford jamais pensara em se
casar de novo, para desespero de metade das mulheres da Inglaterra, e claro, de
sua tia. Que via ruir qualquer chance do bom nome do cunhado e da irmã ficar
ligado a alguma família de respeito.
Como ela mesma alertara Frederic,
várias vezes, estava criando espíritos livres demais, principalmente quando
Rose resolveu viajar pela Europa. Visto assim, não seria tão ruim, porém, ela
ganhara o mundo sem nenhuma preceptora ou dama de companhia. Felizmente, o
título do pai, e sua condição de braço direito da rainha, mantiveram as
aventuras de Rose longe da maledicência das línguas felinas da sociedade inglesa.
Quando retornou de sua primeira
viagem, encontrou a tia empenhada em casá-la com qualquer cavalheiro de renome.
O que não durou mais que duas temporadas e sua decisão de ir para América.
Dessa vez, entretanto, não conseguiu se livrar da tia e elas partiram para
Garden Cross, com os cumprimentos de sua majestade. Ninguém tinha o direito de
pisar aquela propriedade sem o conhecimento expresso da rainha.
Não era seu melhor disfarce para
agir, mas também não era o pior. Aquele baile, em especial, era uma ótima
oportunidade de conhecer a sociedade, mas desde que vira Lorde Henry, estava
inclinada a desistir de qualquer ato. Começara a buscar rotas de fugas em cada
canto do salão, até se deparar com um corredor imenso e se atirar nele com uma
rapidez imensa. Escorregou sorrateira pelo piso de madeira e começara a testar
as maçanetas até que uma girou sob seus dedos e entrou numa biblioteca.
Estava respirando aliviada quando
a porta se abriu e um jovem moreno entrou por ela com duas taças entre os
dedos, e a fitando atentamente.
– Eu vim encontrar alguém... –
sugeriu alegremente. – Porém, vejo que isso será um inconveniente, já que teve
a mesma ideia.
– Não... – ela se apressou em
contradizê-lo. – Não tive.
– Isso é bom – disse indo até ela
e entregando-lhe uma taça. – Talvez possa me fazer companhia, já que está
entediada do baile tanto quanto eu, e me ajude a me livrar de uma situação
indesejável.
As sobrancelhas perfeitas de Rose
empinaram enquanto decidia se bebia da taça.
– Você veio a um encontro ou está
fugindo de alguém?
Ele bebeu da taça longamente e
retirando o casaco, foi até a lareira.
– Um pouco de ambos... – Apoiou
um doa braços na cornija. – Minha mãe inventa esses bailes e sou obrigado a
servir de isca.
– Isca? – achou interessante a
proposta da mãe ao jovem.
– Sou o filho mais novo de Lady
Mackenzie – disse por fim. – Andrew. Não fomos apresentados, mas eu a
conheço... Lady Alcott. – Bebeu mais um gole e Rose notou que caíra numa
armadilha.
Procurando rota de fugas,
delimitou:
– Não me surpreende...
– A mim, sim. – Ele sorriu. – É
mais bonita do que dizem...
Ele estava flertando de novo? –
Rose pensou.
– Obrigada, mas eu tenho que
ir... – ela tentou alcançar a porta, mas ele foi mais rápido.
– Está fugindo de alguém, não é?
– Não! – negou veemente. Ele não
tinha nada a ver com isso, era um intruso em seus pensamentos e ações.
– Pois bem, eu acho que está... –
Voltou a sorrir. – Então, vou entretê-la mais um pouco e descobrir tudo que
quero da senhorita.
– Como? – Era um rapaz
impertinente, isso sim!
Obviamente o jovem não estava
acostumado a moças como ela. Estavam na biblioteca da bela mansão dos
Mackenzie, no melhor estilo vitoriano que poderia se pensar e exigir de uma
família que ascendia firmemente ao topo da lista da boa sociedade americana,
com Andrew sem seu casaco, com um ar descuidado e dizendo que queria conhecê-la
melhor quando foram surpreendidos por um amigo de Andrew e a sua irmã.
Duvidava muito que aquela tivesse
sido uma intervenção desafortunada de coincidências absurdas, como por exemplo,
ela estar atrás de um lugar para fugir justamente de Lorde Henry e achar a
biblioteca destrancada, e Sir Andrew entrar em seguida com dois cálices de
xerez dizendo-lhe que marcara com outra jovem ali.
Andara muito pelas cortes da
Europa, nos seus poucos 22 anos de vida, que não entendesse certos sortilégios
que os homens atribuíam gratuitamente as suas farsas. Na sua profissão, seria
até mesmo ridículo não sabê-las, visto que um deslize poderia significar muito.
Aquele jovem, entretanto, estava
longe de prever sua astúcia. Com uma falta de ar prudente e antes que a jovem
desse o alarme, o qual certamente havia concordado em fazer ou não estaria ali,
desabou pesadamente no chão. Sentiu o corpo forte de Andrew erguê-la e a voz da
moça chegava ao seu ouvido assustada, dizendo que deviam deitá-la no sofá ali
perto.
A jovem ainda arriscou a ideia de
lhe pegar um copo de água ou quem sabe um médico, mas para surpresa de Rose o
jovem Mackenzie tinha algo mais na cabeça que apenas adulações e namoricos, e
dispensou o amigo à tarefa... Mantendo a moça ali.
Num ronronar medido, Rose chamou
o jovem pelo primeiro nome e ele prontamente chegou mais perto. A moça estava agitada, andava de um lado para
o outro, certamente com medo do plano dos três ter consequências sérias... E
teria se dependesse de Rose, que analisou a blusa do jovem – mais três botões e ela deixaria seu corpo com
facilidade. As janelas da biblioteca estavam abertas, o que indicava que uma
fuga pelos jardins seria perfeita.
Assim que o jovem se aproximou de
seu rosto para atender-lhe o chamado, Rose segurou firmemente a gola da blusa,
se ergueu do sofá e a puxou com a força necessária para extraí-la do lugar. Com
um sorriso contra o rosto preocupado de Andrew, ela correu para os jardins e
sumiu na noite.
– O que foi isso? – A jovem, que
estava de costas para eles, redarguiu. – Onde está sua Rose?
Sua Rose? – Escondida sob as sobras
da mansão, ela ouvia a moça se dirigir a si mesma com uma intimidade que nunca
trocara com o jovem Mackenzie. Quando se tornara propriedade de alguém? Nem
mesmo seu pai ousaria tanto
Bufou, e com uma habilidade
surpreendente, voltou ao salão de baile. Passou por sua tia, Lady Hamilton –
deixando a camisa em bolada contra seu colo – e forçou caminho até a anfitriã,
que a recebeu com um sorriso nos lábios justamente quando o jovem que achara
ela e Andrews providencialmente na biblioteca, tentava uma abordagem.
– Lady Mackenzie – Sorriu
estonteante, sabendo que as atenções se voltavam para ela. – Soube que tem uma
biblioteca magnífica.
– Ora... – A senhora de cabelos
escuros como os do filho abriu o leque, abandando-se veemente. – Não é nada se
comparada com a de Garden Cross – sentenciou, referindo-se a biblioteca da
família de Rose.
Como os seus castanhos brilhantes
e muita maestria, enlaçou o braço ao de Lady Mackenzie, contrapondo:
– Deixe que eu mesma decida, pois
não?
Lady Mackenzie devolveu-lhe o
sorriso, incerta, e encaminhou-se ao corredor que, pouco antes, Rose cruzara
com Andrew ao seu encalço. Estava
ansiosa em retribuir a audácia do jovem, tanto quanto o ver nos maus lençóis
que desejara para ambos.
Entabulou uma conversa sobre
botânica com Lady Mackenzie, já que sabia ser um dos assuntos prediletos do
casal, e com felicidade viu-a pousar a mão na maçaneta e girá-la. O leve clique
da lingueta da fechadura se embolou a agitação do coração de Rose, mas foi um
momento de triunfo que durou somente até seus olhos encontrarem o vazio do
cômodo, sem nenhum indício de que havia sido usado.
Rose fechou o cenho enquanto Lady
Mackenzie apresentava suas coleções de obra primas dos mais diversos assuntos,
até claro, serem interrompidas por uma voz conhecida de ambas:
– Permitam-me? – Lady Mackenzie
sorriu e Rose murchou. Esquecera-se completamente de Lorde Henry, que agora lhe
dirigia um olhar deliciado enquanto recebia a mão enluvada de mulher mais velha
entre os dedos.
Não que Lorde Henry fosse um
homem feio ou de maus modos, muito pelo contrário. No alto de seus trinta anos,
era um dos solteiros mais cobiçados da sociedade. Sua família possuía muito
influência junto à rainha, tendo recebido o título de Visconde de Cranford de
suas mãos; embora, claro, fosse filho único e tivesse direito a herdar o título
de Barão do pai. Um dos homens mais influentes da câmara dos comuns inglesa.
Também não era desagradável aos
olhos, já que estava sempre bem vestido, barbeado e era possuidor de atributos
físicos natos, como ombros largos e coxas grossas, assim bem como cabelos
louros bem cortados e olhos de um azul profundo. Qualquer moça em são consciência
– Rose tinha que admitir a si mesma – se consideraria sortuda de tê-lo como
flerte, ou atém mesmo noivo. Uma sugestão que ele já estivera ao ponto de por
em andamento, se não fosse Rose ignorá-la como estava fazendo agora a sua
inquietante atenção.
Os passos dele ecoaram no chão de
madeira lustroso, em sua direção, quando a porta da biblioteca foi aberta e
Andrew Mackenzie surgiu imaculado sob o batente e seus olhos escuros
encontraram os de Rose num brilho difícil de decifrar.
– Lady Rose... – Lorde Henry
capturara sua mão e ela não conseguia respirar sob o beijo no dorso que ele lhe
cedera tão pomposo. – Espero que possa me conceder a próxima dança, já que não
sabia que estava no baile. – Ele sorriu-lhe, Rose pensou em correr novamente
pela porta do jardim. – Se fosse de meu conhecimento, sua presença, teria feito
com que dançasse comigo todas.
Rose empalideceu. Ele conseguia
ser pior e mais descarado que o jovem Mackenzie que, ela não sabia como, agora
estava ao seu lado e segurava firmemente em seu braço.
– Ora, meu caro... – Sorriu o
jovem, que não deveria ter mais que uns vinte e sete anos. – Deveria mesmo ter
chegado antes... – E voltou-se para Rose. – Lady Alcott cedeu-me uma a uma.
Numa reverência, ele capturou sua
mão e colou-a aos lábios de uma forma gentil. Os castanhos analisavam cada
reação de Rose, cada reação da mulher que quase o metera numa encrenca sem
volta. Por que ele fazia isso? Outra tentativa inútil de conseguir algum
compromisso?
Bem, ao menos aquela não seria
tão inútil, porque estava inclinada a seguir a pequena encenação dele até ficar
a salvo de Lorde Henry, e isso podia não ser uma questão rápida caso decidisse
por outra saída.
Ela dispensou-lhes um sorriso que
teve o poder de silenciar os dois cavalheiros por segundos e fazê-la perceber
que o jovem Mackenzie era de uma beleza exótica. Seus cabelos escuros e curtos,
um rosto levemente quadrado e olhos de um castanho expressivo, assim com a cor
morena de sua pele podiam instigar a imaginação de qualquer jovem ao dissabor
de ter o coração arrebatado por um amor à primeira vista... Mas não ela –
Empertigou-se sob os lábios dele – Rose era prática, não tinha tempo para
romantismo, Na realidade, achava romances uma perda de tempo. Sua mente lógica
analisava a cena com curiosidade empírica: tinha esquecido completamente que o
marido de Lady Mackenzie era espanhol, e assim sendo, explicava-se muito da
exuberância do espécime masculino a sua frente.
Analisados os pontos práticos,
estaria mais segura entre os dedos do espanhol, do que sob o olhar seco do
inglês pernicioso. Segurou-se firme no braço de Andrew que a desviou de Henry,
conduzindo-a para fora dali com habilidade.
– Até mais madre... – o jovem
sentenciou ao passar pela senhora, que admirava a cena em silêncio. Com o leque
aberto e espalhando a brisa sobre seu rosto, levemente feliz por seu filho ter
saído vitorioso do embate.
***
Com um suspiro deu adeus às
lembranças dando ouvido aos passos de Lorde Henry que se afastaram para o
interior do cômodo e a suave pressão da porta se fechando ao longe.
Bingo! – Mordeu o lábio inferior
enquanto içava seu corpo à sacada e escorregava para dentro do quarto
silenciosamente em meio às cortinas verdes escuras. Arriscara muito indo ali
para ver seus esforços serem suplantados por uma falta de ocasião de o Lorde
deixar seu aposento.
Andava com cautela, procurando
inibir o som dos seus passos, passando de tapete para tapete, enquanto
observava um pouco da personalidade do Visconde de Cranford. A julgar pelos
móveis sólidos de imbuia, com poucos detalhes e sem muitos ornamentos, diria
que Henry tinha parcas aspirações, porém deveria haver algo ali que revelasse
quem ele realmente era... E havia.
Assim que Rose ergueu seus belos
olhos azuis às paredes, percebeu que não havia uma sequer que não ostentasse um
belo retrato do Visconde. Quer fosse ele cavalgado ou numa sala de música ao
piano. Rose sorriu, ali estava exposta a natureza de um homem que se tinha em
alta conta... Um homem que se considerava acima de qualquer suspeita.
Fixou a escrivaninha do outro
lado do amplo aposento que destoava da severidade do restante da mobília –
provavelmente o presente de alguém que não poderia ser dispensado, porém não
estava à altura de ser uma peça de destaque em qualquer ambiente da casa.
Exceto, talvez, o nicho que ocupava onde a luminosidade quase não lhe
emprestava graça alguma, e menos ainda a deixava funcional ao que se propunha.
Certamente Lorde Henry a colocara
ali por uma questão pessoal e a usava para tal fim também. Para documentos que
considerava importantes a tal ponto que não deviam deixar suas vistas. A cor
avermelhada da peça e os desenhos entalhados em suas laterais, com intricados
arabescos, a deixavam ainda mais grotesca. Rose prestou um pouco mais de
atenção à mobília, notando as duas gavetas com trancas.
Seus olhos brilharam de
excitação. O Visconde não poderia mesmo
confiar que a feiura do móvel mantivesse a determinação de Rose longe de seus
segredos. Ela negou com a cabeça... Não mesmo! Puxou uma chave mestra de um dos
bolsos da calça e meteu-a na fechadura. Na primeira gaveta, encontrou duas
pastas. Uma com promissórias de alguns nomes conhecidos – dívidas de jogo ao
que pareciam –, e outra com um esboço de testamento. Será que Lorde Henry
pensava em partir desse mundo tão depressa? – indagou Rose mentalmente. – Não
se eu puder impedir...
Sorriu de canto e fechou a gaveta
com a mesma perícia que usou para abri-la. Na segunda gaveta encontrou uma
pilha de cartas de uma jovem chamada Catherina, que não continham nada além de
declarações de amor mal redigidas – algo que levou Rose a se perguntar se
errara tanto em julgar o Visconde por seus flertes, já que tão empenhadamente
guardava coisas sem sentido como aquelas.
Respirou fundo, tirando o maço de
cartas da gaveta, e notou que o fundo da gaveta possuía uma folga na união com
uma de suas laterais. Determinada a ver o que o fundo falso lhe daria, meteu a
ponta da chave ali e puxou-o. Outro maço
de papéis surgiu diante dos seus olhos; contudo, aqueles continham um nome que
muito lhe interessava. Era exatamente do que viera atrás.
Passou os olhos rápidos pelas
linhas escritas e eles brilharam realizados. Conseguira!
O barulho de passos no corredor,
entretanto, a fez por de lado o momento de triunfo e fechar a gaveta
rapidamente, colocando os papéis dentro da blusa ampla e disparando para a
sacada ao mesmo tempo em que a porta e abria e o Lorde entrava acompanhado de
seu valete.
– Pegue para mim o casaco verde,
Theodore – disse Lorde Henry e o valete aquiesceu. – Creio que Lady Catherina
mereça meu empenho.
– Mais do que Lady Alcott? –
Theodore sugeriu para desgosto de Rose, que ouvia tudo abaixo da sacada,
esforçando-se em alcançar a sacada debaixo e descer pela trepadeira, como
fizera para chegar ali.
– Catherina é apenas um
aperitivo... – sentenciou Henry enquanto Rose se balançava, segura no desenho
em forma de onda da fachada, e se lançava ao chão da sacada do primeiro andar
ouvindo completar: – Rose é o prato principal, que pretendo degustar com máximo
proveito.
A jovem fez uma careta de nojo e
prosseguiu em sua fuga pela trepadeira. Não demorou a alcançar o coche de
aluguel parado na esquina próxima e ordená-lo a partir na direção da estação de
trem mais próxima. Enquanto o cocheiro apressava-se em seguir suas instruções,
ela fechou as cortinas da carruagem e trocou de roupa, deixando que uma bela
mulher, como seus cabelos caramelos ondulando sobre os ombros e um vestido de
musselina azul delineasse sutilmente as linhas de seu corpo.
Quando chegaram à estação, Rose
saltou com a valise nas mãos e um sorriso para o cocheiro, que recebeu uma boa
quantia por sua discrição. Estava feito... Com o queixo erguido, e segura de si
mais do que nunca, Rose embarcou no trem para Baltimore.
***
O trem partira da estação há pelo
menos meia hora, chegaria antes do amanhecer em Baltimore, e uma nova carruagem
a estaria esperando para levá-la às redondezas de Garden Cross, no Condado de
Garret.
Ela respirava profundamente na
cabine privativa, sem conseguir adormecer, quando a porta foi aberta
abruptamente por um homem de cabelos castanhos, impecavelmente vestido, porém
com a barba por fazer ou que estaria deixando crescer, pois era falha em alguns
pontos no seu lado esquerdo. E embora os traços do jovem fossem atraentes e
houvesse certa sofisticação nos seus movimentos – como a leve curvatura que fez
em sua direção e maneira como segurava seu bastão, cuja ponta era de prata e
ostentava um símbolo que toda a perspicácia de Rose não a deixasse ver –, a
dama se ergueu num único movimento preparada para tudo. Era ágil o suficiente
para em poucos segundos sacar o punhal preso em sua panturrilha por tiras de
couro.
O homem, entretanto, que retirara
o chapéu e deixara seus cabelos caírem sobre os ombros, pareceu notar a rigidez
dos atos da jovem e voltou-se rapidamente à porta, não querendo causar mais
desconforto e solicitando baixo:
– Desculpe-me, parece que errei
de cabine...
Rose estava a ponto de
aceitar-lhe o pedido quando o solavanco do trem a calou e o fez cambalear para
dentro da cabine e cair sobre ela, levando ambos ao encontro do assento. Sem
pensar na boa educação que tivera, a jovem soltou um impropério que nem de
longe atingiu seu objetivo, pois o homem encontrava-se desacordado sobre
ela. Com muito esforço conseguiu
empurrá-lo para o lado e respirar, levando a mão ao colo.
Recobrada a cor do rosto, ela
notou a cor vermelha dos seus dedos e se assustou, procurando por algum
ferimento em si. Talvez tivesse batido com a cabeça em algo ou... Seus olhos
encontraram a mancha escura e úmida no colete do intruso. Uma mancha que cobria
quase toda extensão de sua costela direita.
Preocupada com a gravidade do
ferimento, Rose o deitou no estofado e desabotoou o colete e a camisa, não
ficou tão surpresa pelo corte em si – uma linha rubra de quase quinze
centímetros –, mas sim pelas suposições de como ele a obtivera.
Voltou até a porta da cabine,
certificando-se de que ninguém estava espreitando-os, pois quem quer que tenha
feito aquilo poderia tê-lo visto entrar e Rose nem tinha uma arma consigo
exceto um punhal preso à panturrilha.
Dependendo do atacante não era muito funcional. Porém, para sua
tranquilidade, não havia nenhuma alma perambulando por ali.
Entrou, trancando a porta e puxou
a valise para perto do estranho. Agora, olhando-o melhor, poderia dizer que ele
não teria mais que trinta. A pele possuía uma coloração bronzeada que,
aparentemente, não estava relacionada somente à exposição ao sol, já que os
recantos mais reclusos de seu corpo também apresentavam a mesma coloração em
menor intensidade. Ou seja, o sol teria apenas o efeito de realçá-la. Era largo nos ombros, com músculos rígidos e
bem delineados, e Rose se pegou pensando em que ele trabalharia, como
cavalheiro que era, para ter uma aparência tão diferenciada dos outros que conhecia.
Abriu o kit de primeiros socorros,
que sempre trazia consigo, e tirou algodão, agulha, linha e alguns vidrinhos lá
de dentro. Molhou o algodão em um deles e limpou o corte, notando que a pele
dele estava quente. Talvez mais em brasa do que seu rosto por sentir sua
textura lisa e enxuta. Afastou esse pensamento e continuou seu trabalho antes
que a febre o arrebatasse.
Assim que acabou a sutura, molhou
um pano com água fresca e depositou-o sobre a testa dele. Por segundos, teve a
sensação que o conhecia, admirando-o tão de perto, mas abandonou a ideia, já
que todos os jovens que conhecera eram irremediavelmente um bando de
engomadinhos. Jamais se exporiam ao sol
para qualquer tipo de trabalho.
Cobriu-o com uma manta e arrumou
uma cama improvisada no chão. Esperava que a sutura que fizera, espantasse a
febre, mas se houvesse necessidade de acudi-lo, ele não precisaria se
locomover, forçando o corte. O que poderia ser ainda pior.
Recostou-se na valise, uniu as
mãos sobre o rosto e deixou que toda a agitação do dia desabasse sobre ela como
um sono profundo.
***
Rose acordou quando sentiu que o
trem parara por completo, percebendo cada músculo de seu corpo reagir à noite
mal dormida, dolorido. Praguejou mentalmente o infortúnio enquanto procurava
focar o estofado onde o homem dormira. Apesar de seus olhos ainda estarem
embaçados pelo sono e a falta de claridade – consequência das cortinas fechadas
– percebeu a ausência dele, o que a pôs de pé num único movimento.
Abriu a porta da cabine num
rompante, procurando-o de um lado ao outro, percorrendo o vagão todo. Somente
quando interpelou um dos condutores, é que se deu por vencida. Ninguém tinha
visto nenhum homem com a aparência descrita por ela. Soltou a respiração longamente enquanto sua
mente procurava por algum detalhe que lhe dissesse algo sobre seu repentino aparecimento.
Só nesse momento lembrou-se dos
papéis do Visconde e correu de volta à cabine. Pragueja ter sido tão idiota e
se preocupado com o que pudesse suceder a um desconhecido; agora, entretanto,
se o que pensava fosse verdade, pagaria pela sua imprudência. Não precisou
chegar mais perto, depois de se espremer entra várias pessoas pelo caminho de
volta, para notar o que lhe saltava aos olhos: fora roubada!
Entrou na cabine com o ódio
corroendo suas veias. A valise estava caída no chão e seu conteúdo estava
esparramado sobre o estofado com o desleixo de que só os principiantes eram
dotados. Um sorriso de canto crispou seus lábios, se era apenas um gatuno,
seria fácil achá-lo. Voltou ao corredor, sem dar alarme sobre o roubo e tomando
o cuidado de fechar a porta. Desceria na estação e daria uma boa olhada, ele
não devia ter ido muito longe.
Atravessou o corredor novamente,
mas foi impedida de prosseguir em seu intento pelo solavanco que indicava a
partida do trem. Irritada, ela ainda correu a distância que faltava até a porta
do vagão, mas tudo que pode contemplar foi o rosto dele, em pé na plataforma,
com os castanhos fixos nos seus azuis. Numa mesura, ela pode ler em seus lábios
um obrigado.
Insultada de todas as formas,
inclusive em sua esperteza – uma qualidade que muito presava – Rose o desafiou
com olhar. Não deixaria isso barato, iria atrás dele e daqueles papéis... Ou
não se chamaria mais Rose Anne Alcott!
O que acharam????
Qual a sua opinião??
Eu adorei!!
